quinta-feira, 27 de agosto de 2009

Olhares paroquianos...

Para o padre Francisco Caetano
Por Antonio Nunes Barbosa Filho



Enquanto estava imexível no caótico trânsito desta cidade grande, preocupado com o avançar do tempo ­– que trazia a certeza de que o horário para peticionar junto ao Fórum se esvairia antes de que eu conseguisse fazê-lo como era necessário -, lembrei-me dos ensinamentos do sábio e sempre bem-humorado padre Romano.
Ele nos dizia – seus alunos do curso de direito romano – que tudo tinha o seu lado bom. Que em tudo tínhamos uma lição para aprender, mesmo nas maiores adversidades e que cada oportunidade que se apresentava tinha uma razão de ser. O segredo de bem-viver – continuava – residia exatamente em saber extrair da vida este aprendizado, que nos prepararia para a ocorrência seguinte, de maneira que o viver nada mais é do que uma repetição de fatos e ciclos que nos colocavam à prova. Amadurecer, segundo ele, era o exercício de reconhecer os encaixes entre as situações e os saberes acumulados ao passar dos anos, para que soubéssemos conduzir com sabedoria a nossa existência. Ele estava coberto de razão!
Contou-nos, certa vez, que saíra dos rincões dos sertões nordestinos, ainda muito jovem, para encontrar educação e sustento no mosteiro em que fora acolhido para iniciar-se na vida eclesiástica. Não tinha nenhuma vergonha em confessar que, por alguns anos, naquele ambiente, sentiu mais prazer em preencher o estômago e o cérebro do que, até então lhe conferia, a pretensa vocação que a sua mãe lhe atribuíra por um sonho que tivera quando ele nascera. Mas, tal realidade haveria de mudar... e radicalmente.
Amante das letras, das artes, do conhecimento e da literatura, logo percebeu que afastar-se do meio em nada contribuiria para a satisfação de seus projetos pessoais. Ordenou-se padre. E como iniciante, foi enviado para concluir sua formação junto ao Pe. Geraldo. Justamente com o mais temido sacerdote de toda a região, reconhecidamente linha-dura por seu extremado rigor com os paroquianos e pelas celebrações em cujos sermões não perdoava, tampouco aliviava o peso das palavras nem para os barões e coronéis que, calados naquele momento, se enfileiravam na cabeceira da audiência. E ai de quem não soubesse de cor e em latim as ladainhas... Apesar de celebrar de costas para os presentes, como mandava a tradição, ele sabia exatamente tudo o que se passava, como se tivesse olhos – muito atentos – em sua nuca. Era realmente espantoso!
Um dia, deveras avançado em anos, o Pe. Geraldo adoeceu. O padre Romano viu-se forçado a conduzir os ofícios e assumir os destinos da Paróquia. O mesmo milagre aconteceu! Sabia tintim por tintim, nos mínimos detalhes, do que acontecia às suas costas nas missas. Sabia quem aproveitava a ocasião para passar bilhetinhos aos amantes; quem passava a mão em troco além do devido no ofertório; quem olhava com desdém para o outro; quem olhava com inveja para as vestes do outro; quem matraqueava fofocando da vida alheia. Enfim, nada lhe escapava. Ele sabia realmente de tudo o que se passava naquela modesta capelinha. E, como não podia deixar de ser, soltava o verbo em suas pregações. Se não dizia o nome de a quem era dirigido o palavrório, não era difícil descobrir a quem se destinavam, pois, na primeira oportunidade, com um firme olhar, fitava o destinatário.
Assim, não raro, ao final dos cultos, mãos cobriam os rostos envergonhados – se bem que para muitos era apenas uma tentativa de não encarar o olhar de reprovação do Pe. Romano. Verdadeiras procissões se formavam na sacristia para conseguir junto às beatas, que, sem muito sucesso, tentavam por alguma ordem na balburdia que inevitavelmente se formava a cada celebração, distribuindo fichas numeradas e devidamente rubricadas face aos muitos pedidos para as confissões que - se não as tivesse limitado em máximos 20 minutos por confitente - tomariam quase toda a semana do pároco.
Foi nessa época que conheci o já ilustre vigário. Cheguei até ele por notícia que corria entre o povo de que era um santo-homem, milagreiro, que tudo sabia mesmo sem olhar diretamente em seus olhos, que tudo antecipava como se pudesse ler pensamentos. Aquilo instigou de tal maneira a minha curiosidade que não pude deixar de me aproximar do cura. Aos poucos conquistei a sua confiança. Inicialmente realizando trabalhos voluntários na comunidade circunvizinha à paróquia, depois como tradutor de alguns textos – pois ele já não dispunha do tempo requerido para tanto. Como sempre restava alguma dúvida relacionada aos termos canônicos, eu aproveitava os poucos momentos de intimidade de que dispunha junto ao padre para descobrir até que ponto o imaginário popular condizia com a realidade dos fatos.
Então, ele me falou: - Meu filho, o segredo reside no poder da criação!
Fiquei na mesma. Estava certo de que era de Deus que ele falava. Seria tudo aquilo fruto de dons divinos, revelatórios. Julgava impossível ser de outra forma. Não havia mais nada a desmistificar. E eu teria que engolir para sempre o meu tão proclamado ateísmo. Estava certo de que Deus existia, era um ser superior. Até que me converti e, apesar de fazê-lo tardiamente, me tornei o mais dedicado paroquiano que poderia existir.
E lá estava eu, sempre ajudando o Pe. Romano com seus paramentos, limpando a igreja, polindo o hostiário... Percebi que ele nunca tirava os olhos do alto. Acreditei que estivesse como a olhar aos céus, ao criador. Pus-me em contrição a fazer o mesmo, desejava ser um pouco como ele. Simplesmente foi surpreendente...
Quando ficamos sozinhos, apontei e perguntei-lhe, mais uma vez sobre o mistério. Ele não pode negar e me confessou: - É meu filho, o segredo reside no poder da criação... E isso eu aprendi com o Pe. Geraldo. – concluiu.
Bem lá no alto, completamente imperceptíveis para os fieis, escondidos de maneira que somente da posição em que ele celebrava poderiam ser vistos, estavam, em cada lado, dois magníficos espelhos, disfarçados, escondidos por trás das imagens da padroeira da cidade e do Brasil. Não era à toa que ele festejava e admirava tanto os inventores e todo o seu poder de criação... Tudo era somente questão de interpretação, de hermenêutica, como aprendemos com ele em sala de aula. E de manter os olhos vigilantes, atentos, é claro...

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