quarta-feira, 30 de setembro de 2009

O batizado do porco

Eu sempre fui um rebelde com causas. Ainda mais se a luta fosse contra a dominação, o discurso ideologizante e a imposição dogmática. Não sei por que, mas devo confessar que em meus anos de adolescente – fase de afirmações que quase todos na juventude enfrentamos e, felizmente, superamos, eu disse quase todos e isso vale para as duas coisas: vivê-la e deixá-la para trás – o alvo das minhas inquietações era a Igreja Católica. Talvez isso me passasse em razão da pressão doméstica, sem qualquer tolerância para atrasos ou ausências injustificadas, para participarmos das novenas que nos eram impostas a todos os familiares, inclusive à Tia Fatinha – batizada em homenagem à Nossa Senhora de Fátima, beata de língua comprida e bolsos curtos quando se tratava de realmente ajudar no caso e alguma precisão da paróquia que frequentávamos – e ao Tio Eliezer, sempre contrito, olhos reprovadores, de terço em mãos – quando estavam longe das ancas e das nádegas roliças da negra Sebastiana, quando ela enrolava as saias na cintura, deixando quase antever o que tinha ao centro das pernas bem torneadas, para fazer a lavagem da roupa da família no tanque escondido lá no fundo do quintal da casa de meus avós. Casado, pai de três filhos, quer dizer, três filhas, e generoso como ele só, não deixava faltar nada à serviçal – da cachaça à colônia de alfazema, das miçangas ao corte de chita para o vestido novo no final do ano – que tanto lhe servia, inclusive alimentando a ideia de completar a prole com um filho varão. O filho seria ilegítimo, aos olhos da Santa Igreja, mas as tentativas, não poucas, eram bem reais, é claro!
E uma das questões que mais me incomodava era a obrigatoriedade do jejum em determinadas épocas, por dias seguidos e sequer tocar em carne vermelha na sexta-feira da Paixão. Aquele era imperdoável. Pecado mesmo para mim era o povo não ter o que comer, fosse naqueles ou em outros dias quaisquer.
Foi quando para me vingar dos monges que residiam a poucos metros de minha casa, encomendei à Sebastiana que preparasse o mais saboroso e mais gordo leitão que encontrasse na feira, com tudo o que estivesse ao seu alcance, pois eu não faria questão de gastar todos os centavos de minhas parcas economias. Era um mimo, um agrado que fiz questão de oferecer-lhes bem ao meio-dia de uma 6ª feira daquelas. À pururuca, com rodelas de frutas cítricas cozidas ao forno em delicada calda de vinho branco e cerejas, bastante farofa para acompanhar, com direito à maçã na boca e tudo mais que pudesse despertar naqueles padrecos o pecado da gula.
Cheguei, toquei a campainha, sendo atendido pessoalmente pelo abade, o chefe ou, como dizem, o superior dos religiosos daquele local e passei-lhe em mãos o petisco. Preparava-me para dar meia volta – pensando ter cumprido a tarefa arduamente arquitetada durante quase duas semanas – e só aguardava o portão ser fechado para comemorar a pretensa derrocada deles e, por conseguinte, a minha vitória, enquanto me vinha à mente: – Consegui! É agora!, quando fui surpreendido pelo convite do abado para juntar-me a eles na refeição.
Não tive como dizer não. E além do mais, estava ansioso para desmascarar a pantomima que julgava teria lugar dali a alguns instantes.
O abade mandou colocar a vistosa travessa bem à sua frente na imensa mesa que guarnecia o refeitório. Apresentando-me como benfeitor, destacou a minha participação na refeição, deu graças, orou pelos pensamentos e necessidades de todos os presentes, e sem o menor constrangimento – ou melhor, antes que este pudesse se instalar entre os demais –, fez um breve silêncio e sentenciou com ares absolvitórios:
– Porco, te batizo Peixe! – e fez o sinal da cruz por sobre a cabeça do bicho.
E todos se lançaram ao novo peixe, sem a menor cerimônia, inclusive eu.
Deste dia em diante, conclui: se não pode vencê-los, junte-se a eles, ora! Pouco tempo depois abandonei o pragmatismo juvenil, pois ali aprendi, para todo o sempre, a relativizar. O que me fez um bem danado...

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Vem ai novo livro de Tonton!




E vou logo lançando um concurso: por que este novo livro se chama"Cuarenta"?

Quem escrever e acertar o motivo vai ganhar um exemplar autografado, enviado em mãos.

Agora é soltar a imaginação e concorrer. Boa sorte!

Resposta no dia de Natal. Então, vocês têm até o dia 20 de dezembro para postar as suas sugestões.

Cordial abraço, da terra do frevo e do maracatu,

Tonton

terça-feira, 15 de setembro de 2009

TONTON ganha prêmio e logomarca



Com "O aprendiz de Don Juan", Tonton receberá nesta 5a feira, 17 de setembro, às 20h, na sede da Academia Pernambucana de Letras, prêmio na categoria Literatura Infantil referente aos melhores do ano de 2008. As ilustrações originais são de Braga Câmara (braga_camara@hotmail.com), quadrinista e ilustrador premiado, parceiro habitual nas andanças pelo mundo do imaginário infantil.

A partir da ilustração de Tonton e Balu, do premiado conto "O assalto...", que pode ser lido em http://contonton.blog.terra.com.br/ , Tonton ganhou logomarca de escritor especializado em literatura infatil.

De muito bom gosto! - Foi a opinião dos primeiros a conhecê-la.

Sintam-se convidados a participar desta festa.

Abraços a todos, da terra do frevo e do maracatu,

Tonton

sábado, 12 de setembro de 2009

O viuvário

Clodoaldo era só sorrisos. Aquela vaga informação se confirmara. O paraíso terreno realmente existia e ele havia chegado lá. E melhor, bem melhor, vivo! Vivinho da silva e cheio de energia para gastar. Afinal, para que serviriam anos de alimentação balanceada, alguns quilômetros de caminhada diária – fizesse chuva ou sol –, tubos e mais tubos de protetor solar se depois de tudo isso ele não pudesse desfrutar de tudo isso? A sua hora finalmente havia chegado.
Recebido entre olhares curiosos, sorrisos de alegria e palavras de boas vindas por todas as presentes, ele teve a certeza de que aquele era verdadeiramente um lugar abençoado por Deus, fosse lá qual fosse o deus que quisesse acreditar naquele momento. Estava ali, bem aos olhos dele, era verdade os rumores que ele havia ouvido enquanto caminhava pelo parque central da cidade onde vivia.
Circulou por entre as mesas, recebeu outros olhares – agora bem menos comedidos, quero dizer nada comedidos – desejosos de sua presença. Sentiu-se cobiçado e, por uma fração de instante, quase um homem-objeto. Elevou-se-lhe ainda mais a auto-estima. Ele estufou o peito, passou a mão pelos cabelos já grisalhos e caminhou em direção ao balcão estrategicamente localizado ao fundo do bar, de onde passou a observar todo o movimento. Aliás, para onde se voltaram todos os olhares, pois ele era o centro das atenções e ele percebeu isso. Não se fez de rogado e dirigindo-se à garçonete pronta a atendê-lo – efetivamente a postos – e servir-lhe um cuba libre. De imediato, como cortesia, serviu-lhe, também, uma porção de amendoins e ovos de codorna, anunciando-lhe ser cortesia da casa. Impossível não notar-lhe o pensamento matreiro que lhe ocorrera. E apoiando o cotovelo na barra do balcão, foi trazendo os petiscos aos punhados à boca, enquanto observava o movimento.
Ele sentiu-se o rei da cocada preta, a última limonada do deserto e coisas do gênero. Estava completamente rodeado de mulheres, de todas as idades, de todos os biótipos e cores de cabelo – e com direito a igual intensidade de variações de penteados. Não havia outro homem ali, além dele. Feições de lobo mal se colocaram em seu rosto. Quem seria a chapeuzinho escolhida? As vovós ela já havia descartado na primeira passada de olhar...
Foi quando para fazer-se de rogado – estratégia de conquistador barato, você bem sabe –, voltou-se para a garçonete com cara de Lolita – que já fazia cachinhos nos cabelos com o dedo indicador e cara e bocas, etc. e tal – , e puxou conversa:
– Bem agitado este lugar, não?
– Hoje, sim! – respondeu ela.
– E por quê? – perguntou ele.
– Por sua presença! – respondeu ela.
Sentiu-se lisonjeado com o comentário, mas também um pouco incomodado. Aquilo nunca acontecera com ele em toda a vida.
– E por quê? – perguntou à interlocutora que, desdenhosamente, mascava chicletes.
– Por que estão imaginando quem será a escolhida! – sentenciou.
Ele estranhou ainda mais tamanha sinceridade. E levantando os ombros como se dissesse “E daí?”, completou:
– E o que tem demais nisso?
– Ah, moço, um homem que aqui entra nunca mais volta...
– E qual a razão disso acontecer, minha filha? – falou-lhe com ares agora preocupados.
– Por simples razão...
– Diga logo, minha filha, pelo amor de Deus!
– O senhor não viu a placa lá fora não?
– Que placa, criatura?
– Com o nome do estabelecimento!
– Não. E o que isso tem a ver com...
Mal ele completou a frase e ela tascou, como bala certeira ao coração do pretenso Don Juan:
– Aqui é o viuvário! – disse de sopetão, sem pestanejar e já foi apertando o alarme acionando imediatamente a ambulância, antecipando-se ao enfarte que estava por vir. Fazer o quê? Eu mesmo soube que existia, mas nunca fui lá...