terça-feira, 23 de junho de 2009

Poupança-escova


Uma das maiores maravilhas da natureza humana é a magia da composição de um novo ser a partir do gene de seus pais. É extremamente fascinante ver surgir alguém tão diferente e, ao mesmo tempo, guardando importantes características de seus ancestrais. Creio que exatamente aí reside a porção ou o toque divino na criação. E comigo não poderia ser desigual. Guardo traços físicos de meu pai e caracteres comportamentais de minha mãe. Segundo a minha esposa, a mistura até que deu certo: biotipo e ações tipicamente masculinas permeadas com um que de alma feminina. Ela diz que vive no paraíso!
Bem, mas isto não vem ao caso. Não vim aqui falar de mim, embora possa servir de exemplo nesta narrativa, e sim de minha filha, que ainda está por vir. Muito desejada – principalmente pelas avós – e em tranquila, efetiva e amadurecida negociação por parte de seus genitores. E como é gostoso desejar e planejar a chegada de uma criança. A ideia da chegada de uma pequena com características comuns aos dois, aproxima mais e mais os verdadeiros casais.
Pernocas da mãe, olhos do pai, nariz de um, cílios e sobrancelhas de outro etc. É um momento de renovação de quereres, de carinhos, de promessas e de juras de amor e felicidades eternas. Não é sem razão que dizem que os filhos são o principal motivo da união afetiva, de cunho duradouro e em condição permanente de um casal. Justificativa de transmissão de genes que devem dar continuidade à linhagem em descendentes à parte, faço aqui um alerta para aqueles que, futuramente, desejam partir para empreitada semelhante. Foi assim que tudo aconteceu...
Poucos dias atrás fui convidado para participar de um daqueles jogos em que solteiros enfrentam os casados, querendo impor-lhes uma derrota vergonhosa, para demonstrar as vantagens da vida desacompanhada etc. e tal. Entre as muitas gozações dos amigos que insistiam em dizer que eu não topara tomar parte em nenhum dos times por causa das minhas muitas dúvidas ainda persistentes acerca da nova vida – e já que em nada adiantava as minhas justificativas de que, em realidade, a minha ausência no jogo se devia à minha falta de condição física, de um joelho que insiste em desafiar os médicos – para demonstrar a segurança de minha escolha e da felicidade que encontrei ao lado da futura mãe de meus filhos, resolvi contar-lhes do projeto de tê-los em breve.
Destarte alguns segundos de espanto, logo em seguida fui efusivamente saudado pelos presentes, até mesmo pelos solteiros, que mudaram o discurso para dizerem, agora, que eu realmente estava apaixonado e pior, muito pior, fora completamente dominado por aquele sorriso cativante, quase angelical, mas de um poder quase diabólico – na visão de alguns... Como de costume, após o jogo, teve lugar um farto comes e bebes no bar do clube. E o assunto central não podia ser outro. Todos queriam saber dos detalhes, se ela já estava grávida, se já havíamos escolhido os nomes e tudo mais. Ao que eu respondia-lhes, não, não e não!
Então, alguém perguntou da mesa do canto:
– Concretamente, o que já está decidido ou realizado?
Foi quando lhes falei que não poderia participar da farra em razão de ter que reservar o dinheiro que tinha nos bolsos para a poupança-escova. Surpresos, quiseram saber em detalhes do que se tratava. Falei que como a pretensa mamãe tinha vasta e rebelde cabeleira, estávamos orando aos deuses para que, pelo menos as filhas que nascessem de nossa união, tivessem cabelos como os meus, lisinhos, fáceis de pentear. E daí? Fizeram cara de desentendidos os que estavam mais próximos. O que isso tinha a ver com as economias do casal?
Então, com a calma costumeira, expliquei-lhes que, se não fossem atendidas as nossas orações, as herdeiras teriam que ter reservada e à sua disposição, desde cedo, a grana necessária para as muitas idas ao cabeleireiro para conferir-lhes as características capilares que a natureza não lhes conferira graciosamente... E soltei uma grande gargalhada. Como era apenas uma desculpa esfarrapada para ir almoçar a comidinha doméstica naquele inicio de tarde de sábado, segui para casa tranquilamente, onde fui recebido com beijinhos e carinhos sem ter fim. Contei à esposa a história toda e sorrimos juntos com a brincadeira com a qual justificamos poupar para o futuro da família. Depois da refeição, satisfeitos, dormimos abraçados, coladinhos...
E enquanto a harmonia e amor imperam em nosso lar, pelo que eu soube, a coisa desandou entre alguns casais daqueles que participaram do jogo: alguns noivos e namorados resolveram trocar de companheira. Difícil foi explicar o real motivo... E para outros, entre os casados, a coisa foi pior, bem mais grave: meia dúzia deles resolveu pedir exames de DNA.