sábado, 14 de agosto de 2010

Fórum íntimo



Por Antonio Nunes Barbosa Filho
Sem maiores pretensões...


Zenilda Gratuliano, criminalista das antigas, daquelas que faziam questão de sair de braços dados com o cliente da sala de julgamentos quando alcançava a sua absolvição, estava nervosa como nunca. Coisa rara, por sinal. Provocada, soube-se mais tarde, por essas modernidades da internet.

E a situação só fazia piorar, condenação após condenação, causa após causa, perdidas uma a uma sempre para o mesmo Promotor de Justiça, por sinal, muito mais jovem do que ela. Com sua até então indiscutível reputação de nobre causídica mais que abalada, quero dizer, completamente estraçalhada, decidiu fechar o escritório que já não conseguia captar novos clientes e estava à míngua, bem como sobre constante ameaça de tantos familiares e enviados de clientes agora completamente insatisfeitos.

Por generosidade de uma ex-colega de turma dos tempos da faculdade de direito estava contando com a indicação para contratação temporária como assistente da Defensoria Pública em uma longínqua e quase abandonada Vara Cível de uma pequena comarca da Região Metropolitana da Capital, como a última chance de tentar reequilibrar as finanças cujas dívidas já consumiam os míseros cobres restantes em suas parcas economias. Era de não se acreditar no que se via ou na descrição que ela fazia da relação de contas a pagar com vencimento a se aproximar, em relação à exuberância e esbanjamento de outrora.

Quando ela chega para a entrevista com o titular daquele mister, passo final e decisivo para a sua contratação, eis que ela encontra lá o mesmo e resignado Promotor visitando aquele distinto, tão útil e prestativo órgão do Poder Executivo.

– Maldição! Perseguidor f.d.p!! – bradou ela em voz baixa, trincando os dentes.

Nem se dirigiu à sala da Chefia. Deu meia volta e desistiu do cargo ali mesmo. Afinal, quem confiaria em alguém com a alcunha de “Nildinha 0800”, que promovia festinhas de arromba – com comidinhas e bebidas sem limites, dentre outras ofertas inteiramente gratuitas – para muitos convidados, todos do sexo masculino?

Quando questionada pela amiga porque recusara a função pública, apesar de tanta necessidade, ela foi enfática e respondeu-lhe:

– Por questão de “fórum íntimo”, querida! Bem íntima!

Foi sincera como nunca. Havia anos que era incomensuravelmente generosa com vigilantes, porteiros, guardadores de carros, funcionários dos cartórios, das secretarias e, dizem, até mesmo com alguns promotores e juízes de Varas Criminais. Ah, e também com todos os seus clientes, sem exceção, inclusive os já detentos, além de carcereiros e chaveiros em delegacias superlotadas por aí afora.

Era extremamente feliz e bem sucedida, até o dia em que um adolescente de 14 anos, daqueles que passam o dia todo defronte a um monitor, explorando a internet, hackeou um certo computador e apresentou aquelas cenas inenarráveis ao seu irmão mais velho... que nunca mais perdeu causa alguma para aquela senhora sexagenária.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

A lenda do Colibri



Por Antonio Nunes (Tonton)
Em lembrança de antepassados indígen
as


Contava o meu avô, de ancestrais Tabajaras, do tronco linguístico do Tupi, que habitaram estas terras do litoral nordestino, havia, em longínquos tempos passados, um ancião de coração transbordante de bondade e que vivera por quase mil anos em uma aldeia feliz, cuja felicidade parecia não ter mais fim.

Em tudo o que era possível ajudar os outros, lá estava ele sempre a postos. Foi então que Tupã, vendo tamanha generosidade, concedeu-lhe a graça de ter o sopro divino. Assim, dali em diante, bastava pegar um punhado de areia, colocá-la na palma da mão e com um suave sopro fazê-lo dispersar-se na atmosfera e se transformar em um campo de milho, que alimentaria a tribo e lhes saciaria a fome, ou em um campo florido que encheria de brilho os olhos daqueles que nele repousassem a vista...

A notícia da existência de um santo homem, milagroso, ganhou o mundo. Ou melhor, o dito novo mundo...

Todos os indígenas daquela aldeia viviam em paz e fartura até o dia em que aportaram por estas terras os ditos conquistadores, colonizadores. Ficaram surpresos, maravilhados com tal e inigualável capacidade de dar vida a coisas tão belas. Trancafiaram-lhe e exigiram dele que lhes ensinasse como realizar tal magia. Ele sorriu e disse que simplesmente não podia, pois não era dele aquele dom. Seus algozes, então, não acreditando em suas palavras, com os corações cheios de ganância e de cobiça, acharam que se tratava de um amuleto ou de algo parecido que ele possuía e que, portanto, deveria lhes ser repassado, entregue, para que alcançassem riquezas, ouro, diamantes, dentre outras pedras e preciosos metais. Ele, mais uma vez, sorriu e disse-lhes que não podia dar-lhes o que queriam, pois, definitivamente, não era algo de existência material.

Irritados, aqueles que invadiram as suas terras, terminaram por golpeá-lo até quase a morte. Ele pegou um punhado da areia ao chão, bendisse a terra onde nasceu, fechou a mão e em seu último respiro, sôfrego e ínfimo que foi, soprou por entre os dedos e deu vida ao colibri, pequeno que só e ágil, com destreza para voar em todas as direções e, dessa forma, com a habilidade de se desviar daqueles que tentam capturá-lo. Pode acreditar, foi desse jeitinho que os colibris surgiram.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fé decorativa




Por Antonio Nunes Barbosa Filho
Para um amigo pároco que preza por suas homilias



Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. E nos meus quase 30 anos de sacerdócio, recheado com muitas orações e reflexões, posso afirmar que é nos pequenos gestos que descortinamos a essência de cada ser. Quando menos se espera, de modo sutil, os indivíduos se revelam, ainda que, para tanto, seja necessário interpretar os episódios de uma vida.

Na paróquia em que exerço minhas funções sacerdotais há quase duas décadas, sempre prezei pelo trabalho voluntário e pela ação solidária. Todas as homilias que professo são dedicadas aos distintos aspectos da fraternidade – ensinamento maior do Criador – e ao compartilhar frente ao possuir. Tudo aparentemente ia bem até o dia em que fui convidado a visitar e a proferir uma benção ao lar de dois dos meus mais queridos paroquianos.

O primeiro deles era um profissional bem sucedido, que fazia, regularmente e contra recibos para o imposto de renda, polpudas doações para as entidades assistenciais mantidas pela Igreja. E como gostava de ser festejado como benfeitor... O outro era um simples pedreiro, que fazia questão de participar de mutirões, oferecendo aquilo que tinha de mais precioso, a sua força de trabalho, o seu ofício. Afinal, era tudo o que poderia doar sem comprometer o apertado orçamento doméstico.

Por três vezes tive que adiar a visita ao lar do primeiro, pois o apartamento dele ainda não havia sido entregue pelo arquiteto e ele não se sentiria nem um pouco à vontade de abrir a sua casa para mim daquele jeito, com tantos detalhes por concluir. Parece que sempre havia algo a fazer, a adquirir ou a acertar: um abajur aqui, um quadro acolá, um tapete ali, um retoque na pintura mais adiante etc. Por fim, aparentemente tudo pronto, chegou o grande dia! O edifício era um colosso, de arquitetura magistral, a moradia suntuosa, decoração impecável, vigiada por câmeras on-line, vigias armados, cercas altas e eletrificadas, bem como todos os demais mais modernos aparatos que pretensamente poderiam conferir-lhe alguma segurança, assim como à sua esposa e seu único filho, naquele imenso triplex de mais de 500 m2, tão espaçoso, tão estupefaciente, tão frio... Tudo parecia trancafiado, escondido, resguardado para uso exclusivo. Isto é, se estivesse devidamente segurado... Do contrário, nem pensar ir à rua... Entre queixas e lamúrias de todas as ordens, mal ouviram o que eu tinha a dizer. Que Deus misericordioso tenha compaixão daquela família...

Já para o outro, a geladeira e o televisor novos, comprados a prazo, daqueles de perder de vista, estavam lá, bem à vista. Sem trocadilhos! O primeiro destes eletrodomésticos junto à janela da cozinha, que dava para a rua lateral da casa. E o segundo, por sua vez, bem defronte à porta principal da casa, bem de frente para quem adentrasse aquele lar. A geladeira estava cheia. Em minha inocente boa vontade, abençoei e dei graças àquela fartura. Ele sorriu e me confessou que tudo aquilo não pertencia somente a sua família, mas era de toda a vizinhança. Principalmente daqueles que não tinham como conservar os alimentos refrigerados em sua residência. E quando nos preparávamos para assistir a final do campeonato estadual de futebol em sua televisão novinha, perguntei-lhe se a imagem não ficaria melhor sem os reflexos dos raios do sol daquele quase fim de tarde incidindo diretamente sobre o monitor. Quanta ingenuidade! Mais uma vez ele me sorriu e disse que preferia daquele jeito, pois assim, mesmo os vizinhos que não tivessem disposição para pedir-lhe assento em sua sala, por falta de coragem, por vergonha, por uma vaidade irracional ou por excesso de pudor, poderiam assistir ao jogo sem sentirem-se incomodados. Vejam só, para não se sentirem incomodados. Os outros, e não eles! Imaginem... Quando comecei a proferir algumas palavras, colocaram a televisão no modo silencioso, se aproximaram de mim e respeitosamente invocaram graças por todos daquela comunidade. Oramos juntos e, do fundo de meu coração, pedi a Deus que, em sua infinita bondade, os abençoasse... a todos, sem exceção.

Pois é, caro amigo, você há de concordar, da análise destes casos defini precisamente o que vem ser fé decorativa.