terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

De valsa...


Para Conceição Torres - que propiciou o mote...

Por Antonio Nunes

Maria Quitéria das Mercês era daquelas pessoas que nasceram predestinadas, com o futuro já traçando, não importando o que façam para mudá-lo, pois as forças cósmicas conspiram e o fazem chegar aonde tinha que estar – mesmo que seja na hora e no local errados, como diriam outros. Afinal, a intransponível sina sempre vence! Não é verdade? Então, de nada adianta remar contra a maré... Há de se contentar com o menos dos prejuízos e acender uma vela para o anjo da guarda não estar de férias no momento em que você mais precisar dele... Pelo menos para amenizar...
Filha bastarda do Coronel Ludugero, de ricas posses e muitas minas na região de Diamantina, pobrezinha, desde cedo pagou com a exclusão por sua beleza, por sua tez branca e pelas belas curvas herdadas de sua mãe a mulata Etelvina. Assim sendo, não tinha ainda completado os oito anos de idade quando foi levada – para não dizer abandonada – no Colégio das Vicentinas. E lá cresceu, ganhou corpo e formosura, além de esmerada educação. Mas tudo isso não lhe serviu de passaporte para a felicidade, é o que se imagina até hoje...
Vivia escondida. Nem as freiras, nem as moiçolas da sociedade com quem convivia queriam que a sua beleza fosse apreciada fora daqueles muros. Quanta inveja! E isso nos idos de 1940, Diamantina acabara de ser declarada patrimônio nacional. A humanidade sempre foi igual em todos os tempos... e continua a mesma.
Mas nem só de dias de gata borralheira viveu a nossa personagem. Dia do padroeiro, dia de Santo Antonio, casamenteiro, as meninas ficaram todas esperançosas de por as caras na rua, de ver a vida pulsante, tal como ela é. Não se sabe bem de quem nasceu a ideia, porém o sucesso foi imediato. Em plena quermesse armaram uma barraca de beijos. As moiçolas, Quitéria entre elas, colocavam o mais marcante carmim e carimbavam as bochechas dos cavalheiros galantes que faziam fila para serem premiados. Como a coisa era de se esperar, a fila foi se formando no lado de Quitéria... Então, alguma delas inventou fazer rodízio das beijoqueiras. Teve caboclo que entro na fila mais de meia dúzia de vezes só para ver se ganhava um beijo dela... Aquele foi um dia de princesa! Talvez o único em sua vida...
Mas, destino é destino... Enquanto o seu pai e protetor enchia as burras da irmandade com algumas polpudas doações foi-lhe permitido viver naquele meio. Todavia, um dia ele faleceu e a viúva oficial não descansou enquanto não a viu sem eira nem beira. Quitéria foi expulsa, execrada, posta na rua apenas com a roupa do corpo e mínimas mudas de roupas íntimas. Triste, muito triste a cena. E ninguém fez nada por ela!
Sem saber o que fazer, viu-se apontada pelas ruas da cidade, como se fosse a maior das pecadoras deste mundo. Como se fosse o fruto proibido que a todo custo queriam ver-se livre dele. Somente então soube de sua origem. Que constrangimento! E naquele momento pegou carona com o primeiro motorista de caminhão que partia para longe dali, para Belo Horizonte, aonde veio desembocar. Na cidade grande, sem dinheiro nem amigos, não soube o que fazer. Contudo, ela não era de se entregar. Caminhando pela cidade viu um letreiro dizendo assim: “Precisa-se de instrutor para aulas de dança”. Aquela vaga ela conquistou, trabalhou, juntou algum trocado e num certo dia voltou para rever sua querida Diamantina.
Por coincidência era 13 de junho outra vez. E haveria um baile nos salões do clube municipal, bem naquela noite. Como ela estava bonita... De belo vestido, de faces coradas, de aspecto mais que saudável. Era a mais encantadora das visões que alguém já podia ter posto os olhos naquela pacata cidade...
Um belo rapagão a tirou para dançar... Bailou, bailou... E como não podia deixar de ser, chamou a atenção, atiçou a cobiça dos solteiros e colocou as solteiras em promoção, colocadas na prateleira mesmo. Afinal, nenhuma outra tinha seus encantos, sua leveza...
Enfim, a maldade humana não tardou a ganhar espaço e despejar-se de um coração amargo, odioso. Percebendo que Lindolfo o melhor partido da região por ela se encantara, Gerusa Onofre despeitada que estava, pois o queria somente seu e não admitira a rejeição que recebera, destilou aos ouvidos da mãe do pretendente da outra e seu pretendido a macabra confissão:
– Ela vive na capital, de mão em mão, ganha dinheiros dos homens entre sorrisos e satisfações, vejam só os lábios em puro rubor. Ela é de valsa, de valsa como ela só...
E aquilo foi o suficiente para se instalar o escândalo. Dizem que o baile acabou por ali mesmo, que Lindolfo tentou a todo custo dissuadir Quitéria de sua ideia de ir-se embora no mesmo momento e que ela desde aquele dia descobriu um jeito de ganhar muito mais dinheiro dos homens que caiam aos seus pés diante de sua beleza...
É caro leitor, dizem mesmo que língua de um povo é coisa viva, dinâmica e que naquele baile o nosso humilde vernáculo ganhou uma nova palavra de tom mais que pejorativo. Se isso tudo é verdade, eu não saberia dizer... Sei apenas que o destino de Quitéria é um completo mistério, indevassável, virou lenda... Nas noites de lua cheia dizem que o espírito dela percorre as ladeiras da cidade convidando jovens incautos a bailar. E isso, eu mesmo vivi... Sorte minha que não sei dançar!


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