sábado, 27 de fevereiro de 2010

Escândalo!

Sem ter vagas na escola, onde em anos anteriores ela costumava merendar - e já nem havia porque, pois lá não havia professores por causa dos baixos salários e tampouco merenda em razão do desvio de verbas -, enquanto ela tentava recuperar as forças, depois de ser atacada violentamente pelo velho engravatado que ofereceu-lhe algum dinheiro em troca de favores que não convém confessar - e nem podia, já que por aquelas horas a porta da igreja estava fechada -, ela ajoelhou-se, enxugou as lágrimas que insistiam em rolar e apanhou a flor que nem cheiro tinha. Foi um escândalo! E, de imediato, a polícia apareceu por lá...

Dizem que ela arrancou-a com a próprias mãos.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Sobre meu pai.



A gente cresce sem ter a noção real de quem são os nossos pais. Com as mães a coisa aparenta ser mais simples, porque elas parecem estar sempre lá, mesmo que por algumas vezes a gente quisesse ficar sozinho, trancados no quarto ruminando as ideias. Mas, pelo que aprendi ao longo da vida, creio que todas as mães guardam semelhanças entre si, onde quer que se encontrem independentemente da cultura, da língua ou de sua religião. Acreditam que podem invadir um pouco as nossas vidas, talvez porque primeiro nós as invadimos e, sem pedir licença, vamos tomando conta da vida e do corpo delas por um bom tempo.
Já com o pai é diferente. Dia desses até vi numa reportagem na tevê que com os exames de DNA os casos de paternidade desconhecida – aqueles em que a certidão de nascimento só vem com o nome das mães e dos avôs paternos (quando não apenas com o da avó) – estão cada vez mais raros. Que bom, não é mesmo? Deve ser uma barra carregar esta dúvida e, talvez, este estigma por toda a vida. Nem consigo imaginar como seria a minha vida sem o meu pai.
Mas o mais engraçado na vida é que a gente só começa a ter a verdadeira noção de quem ele é quando a nossa vida já está tão repleta de tantas outras coisas que parece nem mais haver tempo – ou espaço – para ele. Pode ser o início do reconhecimento da falta que ele faz. É isso! Aí, tentamos colocar as coisas em ordem e a tentar arranjar tempo para as pessoas, porque são elas o que realmente importa em nossas vidas.
Bem, eu era a menininha do papai. Como dizem, há uma magia extra entre pai e filha. Que existe, existe e não dá para explicar. Quase todas as noites ele ia me colocar para dormir. Sentava-se ao lado de minha cama e ficava conversando comigo, quando não inventando histórias, lendo livros – e eu nem tinha ideia de onde provinha tudo aquilo que me enchia de encantamento.
Foi lá pelos 8 ou 9 anos que descobri que ao sair do meu quarto, ele ia para um canto reservado da casa e registrava cada uma das narrativas, seus personagens, cenários e lapidava-as preenchendo de detalhes cada uma daquelas histórias que surgiram minutos atrás.
Só pelos 12 ou 13 anos foi que tomei ciência de que meu pai era o autor daqueles livros. Certa vez, ele foi me buscar no colégio – fazia questão de participar ativamente de minha educação – e recebeu um convite para falar de suas obras e de seu processo criativo para o alunado. Apesar de toda a timidez, como toda a boa vontade bem típica dele, aceitou o convite e proferiu a palestra – o bate-papo, como ele preferia dizer. Acredito que foi a primeira vez que expressei abertamente orgulho de ser sua filha. Com um brilho bem próprio nos olhos, dizia a todos que me perguntavam:
– Sim, é o meu pai!
Decidi, em curiosidade bem comum da adolescência, conhecer este outro lado de sua vida, tão importante para ele. Fiquei encucada: uma dúvida abateu-se sobre mim! Quem era realmente aquele ser que eu chamava tão carinhosamente de pai, de papai? Aquele com quem convivi em seu anonimato ou aquele que se expressava de tantas e diferentes formas, como se fosse muitos, sendo apenas um?
Somente aos 16 anos consegui entender que todos eles eram um só. Consegui, finalmente, perceber em quase toda a extensão e complexidade o que significava ser um escritor. E mais, ser filha de um escritor. Sê-lo tem uma indiscutível sensação, que eu tentaria traduzir assim: hoje, ao lê-lo, seja em que estilo for, prosa ou poesia, sinto-me envolvida e abraçada por suas palavras, pois reconheço que foram colocadas bem ali, justamente para mim. E para toda a eternidade!

Desconhecido íntimo.



Eu sempre fui um cara discreto. Pelo menos tenho tentado, por toda a minha vida. Creio que a minha timidez me força a sê-lo. Se eu passasse pela vida e não deixasse rastro, estaria mais que satisfeito. Meus hábitos são modestos, não uso roupas extravagantes: jeans básico, camisa de algodão e mangas curtas, quase nunca tiro o chapéu panamá da cabeça – para proteger a cabeça, por causa da calvície, neste sol escaldante de onde vivemos – e só o faço porque foi presente da esposa. Desses escolhidos a dedo. Ou melhor, pelo braço. Ela me levou à loja para escolhê-lo consigo. Para não correr o risco de ela comprar, eu não gostar e ela ter um trabalhão danado para trocá-lo por outro que me parecesse mais ao meu estilo. Não teve jeito e lá fui eu com ela. Como ela diz: para o meu próprio bem, pois o danado do chapéu protege mesmo. E, então, ao lado dos meus eternos companheiros – os óculos – compõe a minha imagem à primeira vista e por detrás dos quais tento me esconder quando estou no transporte público.
Você deve estar curioso em saber como alguém como eu conseguiu casar, não é mesmo? Isso não é tão difícil de explicar, companheiro. A questão é que as mulheres sempre escolhem! Ponha-se a pensar se não é verdade. Eu só tive a sorte de ser escolhido por uma boa mulher. E isso é tudo o que tenho a dizer a respeito.
Estranho mesmo foi quando, dia desses, eu vinha para a casa, bem na hora do rush, ônibus completamente lotado. E eu tentando guardar ainda mais o anonimato, como fazia regularmente, lendo alguma coisa durante o trajeto. Foi quando um rapazote, lá pelos seus 18 ou 19 anos, começou a me fitar insistentemente. Suei frio! Pensei que ia ser assaltado! Afinal, é só disso que a gente ouve falar ultimamente. De crimes que acontecem sem razão de ser, com pessoas que têm as vidas mais banais do mundo e que, de repente, ganham uma mísera narrativa no telejornal, quando, no máximo, te mostram estendido em um flash sensacionalista. E eu me incluiria entre eles, tinha certeza até então.
Como ele não tirava os olhos de mim, decidi me precaver e puxei a campainha do ônibus. Se descesse, talvez ele escolhesse uma outra vítima naquela lotação.
Foi quando, pondo um dedo em riste, como se me apontasse um revólver e um outro em gatilho, fez menção de atirar e disparou:
– Bingo! Você é o auotr daquele livro. Maneiro cara! Gostei do estilo como você escreve...
Antes que ele tivesse tempo para algum outro comentário, disse-lhe um obrigado quase - mudo e acenei-lhe brevemente com mão esquerda, enquanto com a direita tentava me desvencilhar de quem estava à minha frente e que atrapalhava a minha saída. Enfim consegui saltar para fora, pé ante pé, nos ínfimos espaços que sobravam para tanto.
E enquanto esperava a próxima condução, que por àquelas horas tardaria, no mínimo, cerca de meia hora, tive bastante tempo para rever os meus conceitos sobre mim mesmo. Tudo veio abaixo, porque concluí que como escritores, somos ilustres desconhecidos íntimos de todos nossos leitores! E o que lhes damos, essa é a verdade, os faz se aproximar cada vez mais de nós, porque nós os invadimos primeiro e, por vezes, mudamos, mesmo sem querer, sem intenções ou pretensões – muito menos autorizações –, o seu jeito de ser.

História de duas vidas.






quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Strike, Nina!



Fim de ano! As promessas de deixar para trás as mágoas, as invejas, os desentendimentos e todos os outros sentimentos não tão nobres são sempre renovadas, não é verdade?
E naquela firma tinha tudo para dar certo. Chefe novo, embora não tão novo, quero dizer, já bastante experiente, cheio de boas intenções e de ideias na cabeça. E, pelo que tudo indicava e fazia crer, era extremamente humano. Tal perfil era de crucial importância para aquele tipo de organização: uma empresa de telemarketing, com milhares de trabalhadores – e que, certamente, era a maior empresa do ramo em toda a América Latina.
Como queria entrosar-se rapidamente com todos os supervisores, uns 20 ou 30 ao todo, convidou-os a participar de uma confraternização em um boliche num shopping center local. Ele mesmo se encarregaria de explicar as regras e dar algumas dicas aos não-iniciados ou neófitos naquele esporte que praticava desde o tempo em que estivera nos Estados Unidos para a sua primeira temporada naquele país, ainda quando estudante do ensino médio. Àquele intercâmbio seguiram-se estadias para um MBA, para um mestrado e também para várias férias em Orlando, Nova Iorque, Miami e até para uma conexão numa ida rápida a Cancun que, aliás, ele detestou. Para ele, o “american way of life” era simplesmente o máximo!
Todos presentes, formaram-se as equipes. Até mesmo aqueles que nunca haviam pisado naquele tipo de tablado se envolveram na brincadeira. E ele tinha um motivo especial para ser solícito e atencioso. A bela e charmosa Nina – a quem já observava com olhos de lobo mau, havia dias – estava ali, bem ao alcance de suas mãos, literalmente. Formas generosas, sorriso largo, dentes perfeitos, batom e perfume sempre a postos. O conjunto da obra era uma máquina perfeita de sedução. Com ares de despretensiosa modéstia, ele ajudava-a a escolher as bolas, ensinava-a a postura correta a adotar a cada lance e por aí vai. Chegou mesmo a ganhar alguns sorrisos e olhares de soslaio em retribuição.
Foi então que a sorte de principiante do Severino começou a chamar a atenção. Strike! Strike! Strike! Em poucos minutos a coisa toda já havia mudado, sabe-se lá de onde surgira a ideia, mas estava em curso uma disputa homem a homem. O chefe e o Severino, apenas os dois, para o deleite dos curiosos que começavam a se aglomerar para observar o entrevero “bolichístico”.
Strike! Strike! Strike! A platéia aplaudia efusivamente os competidores a cada bola arremessada. E Nina já dividia a sua admiração. O embate se tornava cada vez mais duro...
Foram incríveis 32 strikes seguidos. Páreo duríssimo. Coisa de cinema. Era mesmo de se filmar tudinho e mostrar em detalhes, em câmera lenta, no programa televisivo dominical, naqueles em horário nobre. Foi então que serviram ao Severino um caldinho. Era o último arremesso do chefe. Ou arrancava o empate ou perdia o certame. O que jamais acontecera antes! O Severino caiu de lado, antes do tempo previsto. A bola partiu, meio sem prumo e, lá no fim, bem próximo aos pinos, foi ganhar a canaleta.
Os legistas encontraram no corpo da vítima uma generosa porção de um poderoso veneno: estriquinina!
É da natureza humana. Dizem que ele, hoje fugitivo, já foi visto pelo interior do Texas, Dakota e Wyoming... Em lugares menos competitivos, ora essa!