segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Fé decorativa




Por Antonio Nunes Barbosa Filho
Para um amigo pároco que preza por suas homilias



Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. E nos meus quase 30 anos de sacerdócio, recheado com muitas orações e reflexões, posso afirmar que é nos pequenos gestos que descortinamos a essência de cada ser. Quando menos se espera, de modo sutil, os indivíduos se revelam, ainda que, para tanto, seja necessário interpretar os episódios de uma vida.

Na paróquia em que exerço minhas funções sacerdotais há quase duas décadas, sempre prezei pelo trabalho voluntário e pela ação solidária. Todas as homilias que professo são dedicadas aos distintos aspectos da fraternidade – ensinamento maior do Criador – e ao compartilhar frente ao possuir. Tudo aparentemente ia bem até o dia em que fui convidado a visitar e a proferir uma benção ao lar de dois dos meus mais queridos paroquianos.

O primeiro deles era um profissional bem sucedido, que fazia, regularmente e contra recibos para o imposto de renda, polpudas doações para as entidades assistenciais mantidas pela Igreja. E como gostava de ser festejado como benfeitor... O outro era um simples pedreiro, que fazia questão de participar de mutirões, oferecendo aquilo que tinha de mais precioso, a sua força de trabalho, o seu ofício. Afinal, era tudo o que poderia doar sem comprometer o apertado orçamento doméstico.

Por três vezes tive que adiar a visita ao lar do primeiro, pois o apartamento dele ainda não havia sido entregue pelo arquiteto e ele não se sentiria nem um pouco à vontade de abrir a sua casa para mim daquele jeito, com tantos detalhes por concluir. Parece que sempre havia algo a fazer, a adquirir ou a acertar: um abajur aqui, um quadro acolá, um tapete ali, um retoque na pintura mais adiante etc. Por fim, aparentemente tudo pronto, chegou o grande dia! O edifício era um colosso, de arquitetura magistral, a moradia suntuosa, decoração impecável, vigiada por câmeras on-line, vigias armados, cercas altas e eletrificadas, bem como todos os demais mais modernos aparatos que pretensamente poderiam conferir-lhe alguma segurança, assim como à sua esposa e seu único filho, naquele imenso triplex de mais de 500 m2, tão espaçoso, tão estupefaciente, tão frio... Tudo parecia trancafiado, escondido, resguardado para uso exclusivo. Isto é, se estivesse devidamente segurado... Do contrário, nem pensar ir à rua... Entre queixas e lamúrias de todas as ordens, mal ouviram o que eu tinha a dizer. Que Deus misericordioso tenha compaixão daquela família...

Já para o outro, a geladeira e o televisor novos, comprados a prazo, daqueles de perder de vista, estavam lá, bem à vista. Sem trocadilhos! O primeiro destes eletrodomésticos junto à janela da cozinha, que dava para a rua lateral da casa. E o segundo, por sua vez, bem defronte à porta principal da casa, bem de frente para quem adentrasse aquele lar. A geladeira estava cheia. Em minha inocente boa vontade, abençoei e dei graças àquela fartura. Ele sorriu e me confessou que tudo aquilo não pertencia somente a sua família, mas era de toda a vizinhança. Principalmente daqueles que não tinham como conservar os alimentos refrigerados em sua residência. E quando nos preparávamos para assistir a final do campeonato estadual de futebol em sua televisão novinha, perguntei-lhe se a imagem não ficaria melhor sem os reflexos dos raios do sol daquele quase fim de tarde incidindo diretamente sobre o monitor. Quanta ingenuidade! Mais uma vez ele me sorriu e disse que preferia daquele jeito, pois assim, mesmo os vizinhos que não tivessem disposição para pedir-lhe assento em sua sala, por falta de coragem, por vergonha, por uma vaidade irracional ou por excesso de pudor, poderiam assistir ao jogo sem sentirem-se incomodados. Vejam só, para não se sentirem incomodados. Os outros, e não eles! Imaginem... Quando comecei a proferir algumas palavras, colocaram a televisão no modo silencioso, se aproximaram de mim e respeitosamente invocaram graças por todos daquela comunidade. Oramos juntos e, do fundo de meu coração, pedi a Deus que, em sua infinita bondade, os abençoasse... a todos, sem exceção.

Pois é, caro amigo, você há de concordar, da análise destes casos defini precisamente o que vem ser fé decorativa.

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